É preciso hackear o sistema: entrevista com Cynthia Zanoni, keynote BrazilJS Conf 2021
Uma das keynotes da 10ª BrazilJS Conf, a desenvolvedora gaúcha conta sobre sua missão de fortalecer o protagonismo feminino na TI
Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre, é uma das cidades mais pobres e violentas do Rio Grande do Sul. Seus moradores estão sujeitos à tal sorte de dificuldades, que é fato notório sempre que um talento emerge de lá.
Filha de um cobrador de ônibus e de uma caixa de supermercado, Cynthia Zanoni nasceu em Porto Alegre, mas foi criada em Alvorada. Talvez pudesse se contentar em ter obtido melhor sina que os vizinhos ao se tornar uma destacada funcionária de Bill Gates e se mudar para a maior e mais próspera cidade do Brasil. Só que não.
Dentro e fora da Microsoft, a missão da bacharel em Tecnologia é abrir espaço para que outras mulheres possam se destacar nesse mercado, 99% masculino, superando as dificuldades impostas pela sociedade, pela pobreza, pelo machismo.
Ela é fundadora e CEO da WoMakersCode, uma comunidade que há quase sete anos oferece capacitação e mentoria para mulheres que querem trabalhar na área de TI. De 2015 para cá, mais de 200 mil pessoas foram impactadas por eventos, workshops, meetups e conferências. Mais recentemente, a comunidade passou a oferecer cursos, que já beneficiaram 23 mil mulheres. Tudo de graça.
E Cynthia ainda pode se orgulhar de ter disseminado, dentro da Microsoft, programas que visam reduzir as subrepresentações sociais na tecnologia, voltados para mulheres, negros, LGBTQIA+ e estudantes pobres.
“A gente não vai conseguir ser inovador enquanto empresa se a sociedade não tiver representação dentro da empresa. Temos de batalhar para fazer isso acontecer. Em termos de sociedade, a pandemia deixou ainda mais evidente as diferenças sociais. Não podemos ser hipócritas e subir num palco, presencial ou virtual, e dizer que a tecnologia é maravilhosa, sendo que a gente sabe que existe muita diferença de condição, de acesso a oportunidades. Ao entrar em espaços privilegiados, a gente tem de colocar na mesa palavras de intencionalidade. Eu tenho que ser intencional para dizer que ‘ok, existem muitas pessoas desempregadas, mas preciso priorizar quem tem mais dificuldade de fazer uma carreira”
- Cynthia Zanoni
Acompanhe, a seguir, um breve perfil da executiva, que será uma das palestrantes da 10ª BrazilJS Conf, maior evento sobre JavaScript do mundo, que será realizado nos dias dias 21, 22 e 23 de outubro, em modelo phygital, a partir de Porto Alegre. As inscrições estão abertas no site:
Como surgiu seu interesse pela tecnologia?
Quando fiz 15 anos, tive o primeiro contato com computador. Ao invés de ter a festa, vestido, optei por um PC, porque eu via na escola as pessoas falando de internet, que na época, ainda era discada. O tal computador era de segunda ou terceira mão, mas fui nutrindo um sonho de ter mais condições de adquirir coisas modernas e pensando que aquela máquina poderia ser uma profissão para mim. Aos 16 anos, fazendo o Ensino Médio, comecei a fazer um estágio e a juntar dinheiro para fazer um curso técnico [em web development] em uma escola particular. Fiz o curso e consegui o primeiro trabalho como desenvolvedora jr.
Quando você percebeu que esse era um ambiente predominante masculino?
Na faculdade, me formei tecnóloga de sistemas para internet, mas desde o curso técnico vinha aquele sentimento de que eu era uma entre muito poucas. Eram 99% de homens. Mas nem sempre foi assim! Quando o mercado de tecnologia começou a crescer no Brasil, há 20, 30 anos, não havia tanta disparidade dentro da faculdade ou das empresas. Eram as mulheres que estavam dentro dos cursos de Ciência da Computação. Depois, algum fenômeno aconteceu e nossa presença acabou diminuindo demais. Ficou enraizado, de certa forma, que mulher que trabalhar com tech vai estar no Design, “porque tem bom gosto”, “porque sabe combinar cores”, “sabe deixar as coisas bonitas”. Isso tem conexão com a cultura da sociedade de que a mulher tem de cuidar do lar, das pessoas, deixar tudo mais bonito ao seu redor. Então, a gente tem mais representatividade de mulheres nessa área ou como gerente de projetos - que se a gente colocar no papel, tirando termos e metodologias de trabalho, é a mãe do time, é a mãe do projeto. É quem cuida das pessoas, coloca a mão no meio quando está rolando uma treta, para separar e organizar. E daí o cara é o engenheiro, ele cria, ele faz, ele acontece, é o rockstar. A mulher, não.
Você têm uma experiência muito grande na criação e gestão de comunidades, na realização de eventos, palestras etc. Quando você achou que era necessário criar uma comunidade voltada para as mulheres da tecnologia?
Eu comecei nas comunidades cedo, porque sentia que só na sala de aula eu não ia aprender o suficiente para poder trabalhar. Muitas palavras e termos que a gente tem no dia a dia da tecnologia não são os que se ouviam na aula. Eu via que meu trabalho era muito mais acelerado que aquilo. Então comecei a participar de comunidades de tecnologia, como Fórum Internacional de Software Livre, o Fisa, me juntei com a fundação da Mozilla no Brasil, Foi um momento de abertura de mente, de conhecer várias pessoas, inclusive de fora do país. Eu não sabia falar inglês, usava o Google Translator. Mas foi se criando um sentimento em mim de, ‘que Legal que você está tendo acesso a relacionamentos, palestras, descobrindo que dá para construir tais coisas usando certas tecnologias’. A cultura do open source é muito forte nas comunidades. Ela não é só pensar qual é a linguagem de programação aberta para qualquer um usar sem nenhum custo, mas pessoas de diferentes realidades construírem uma coisa juntos, independentemente de estar em Alvorada ou em Londres. Estar naquele ambiente e descobrir uma área que eu poderia colaborar com meu conhecimento, e em troca aprender com o conhecimento das outras pessoas, foi algo que mudou o destino da minha carreira e consequentemente da minha vida.
Por quê?
Consegui acelerar conhecimentos indo para eventos, fóruns de discussões, participando de projetos. Aprendi cada vez mais e tive empregos melhores por isso.
No início da minha carreira, se você olhar no meu Linkedin, verá que eu ficava um ano, oito meses em cada lugar. Quando chegava o momento em que sentia que não estava aprendendo mais nada, eu me movimentava. Troquei umas quatro ou cinco vezes de trabalho, querendo ir para coisas mais desafiadoras de programação para buscar me desenvolver tecnicamente.
E como foi virar palestrante?
Até 2013, eu estava no backstage de comunidades de tecnologia. Mais ajudava a organizar eventos. Só que eu pensei: “Eu tb sei falar das coisas que as pessoas falam nos eventos. Por que não começo a palestrar?”. Daí, comecei a produzir conteúdos. O primeiro evento técnico que eu palestrei foi o RSJS, organizado pelo Felipe e o Jaydson, da BrazilJS Conf. No começo, meu tema era programação. Comecei a falar mais fortemente sobre comunidades em 2015, depois que passei por uma série de situações de machismo dentro delas e decidi criar a minha própria, que é a WoMakersCode.
Que tipo de situação de machismo?
Em uma das discussões, um dos rapazes da comunidade disse: “A gente não vai se preocupar com isso, porque é só você de mina aqui dentro, é só você que está reclamando, que vê problema nesse tipo de piada ou brincadeira. Nós não vamos nos tornar essas pessoas chatas por sua casa”. Então, já que nesse formato reclamar de falta de respeito é cortar a “legalzice” do ambiente, resolvi criar um ambiente em que tanto eu quanto outras mulheres pudessem se sentir bem e seguras para construir, sem passar por machismo, “brincadeiras”, constrangimento, assédio ou outras coisas.
Como foi o começo na WoMakersCode?
Começou como um grupo de estudos de programação, depois a gente foi crescendo para fazer eventos, uma série de iniciativas. Junto a isso, veio minha grande mudança de chave de carreira. Eu fui “descoberta” pelo gerente da [Microsoft] que me contratou dentro de um evento. Eu estava palestrando, ele assistiu e me chamou para conversar sobre a Microsoft e me perguntou se eu já tinha ouvido falar da profissão de Developer Advocate. é uma função para pessoas que sabem desenvolver, criar sites, plataformas, aplicativos, mas que além de conhecimento técnico, têm soft skills mais apuradas para apresentações em público e para engajar pessoas a verem valor no que você está apresentando ou ensinando. E ele disse que havia vaga na empresa para esse trabalho. Eu disse que não sabia programar em dotnet, linguagem criada própria da Microsoft, mas ele me disse que a cultura da empresa estava mudando e que queria justamente contratar uma pessoa fora daquele universo para mostrar que era diferente e fazer isso chegar aos desenvolvedores e a todas as comunidades de tecnologia de open source, que era de onde eu tinha vindo.
Você se candidatou para a vaga e acabou conquistando-a. Mas no que isso influenciou a WoMakersCode?
Com minha mudança para São Paulo, a comunidade teve um crescimento gigantesco porque a cidade é o coração da tecnologia no Brasil. Então, a partir de 2016, ela começou a crescer. Hoje, temos núcleos separados por regiões do Brasil e fora dele, com mulheres brasileiras que migraram para México, Canadá, EUA e países da Europa, levando a comunidade como espaço de debate e troca de conhecimento técnico entre mulheres.
E como surgiu o bootcamp de capacitação e o hacking de carreira?
Em 2017, comecei a tentar mudar um pouquinho o alvo do que a gente fazia dentro da WoMakersCode. A gente pensava: “Reunimos mulheres no evento, plantamos nela a sementinha do interesse de aprenderem, se engajar e fazer algo no tech. Mas por que então elas não estão no mercado de trabalho? O que está faltando?”
Com isso, criei um programa que tem essas duas vertentes. O bootcamp de capacitação técnica é um curso focado em programação ou ciência de dados. São as áreas em que se atua com JavaScript e dados para quem quer trabalhar com sites e inteligência artificial.
Já o hacking é nosso programa campeão para transição de carreira. A ideia é “hackear” o sistema? Vemos na mídia que há milhares de vagas em TI, como fazer com que as mulheres as ocupem? No hacking da carreira, elas aprendem sobre soft skills, a usar o linkedin, a melhorar o currículo. Parece óbvio, mas às vezes as coisas óbvias não estão acessíveis a certas mulheres. Nós fazemos esses cursos de forma gratuita, buscando parcerias com empresas que já têm consciência sobre diversidade e inclusão e querem contratar mulheres. A gente faz aquele "match": eu preciso de ajuda para fazer capacitação e vocês querem mulheres capacitadas. Vamos dar um match? (risos). Até agora, 23 mil mulheres já participaram dos cursos.
E como foi sua experiência na Microsoft?
Entrei trabalhando como developer advocate, e, após um ano e meio, fui promovida para gerente dessa área, onde fiquei nos últimos 4 anos. Mas em janeiro, fiz uma transição de carreira. Recebi uma proposta para ser estrategista de tecnologia no Brasil. Hoje, eu convenço os CTOS das empresas sobre as melhores tecnologias para que eles possam crescer no mercado. É uma venda técnica. Por exemplo, o Itaú tem um novo chatbot que usa a tecnologia da Microsoft, feito por uma empresa desenvolvedora parceira. Meu papel é influenciar para que essa empresa que está entre o cliente e a Microsoft faça o melhor uso das tecnologias e sempre nos escolha para fazer seus projetos.
Você conseguiu implantar projetos inclusivos também na empresa
Meu maior orgulho em termos de Microsoft foi não só fazer os projetos ensinando sobre a
tecnologia da empresa, mas criar uma vertente muito forte de impacto social para pessoas que querem ser desenvolvedoras. Lancei projetos sobre tudo um pouco. Alguns estão com inscrições abertas, como o Black Woman Tech, voltado para pretas ou pardas que querem entrar para o mercado de tecnologia, mas não tem acesso a formação. Elas passam pelo processo seletivo para receber mentoria técnica de profissionais da Microsoft, aprendem a usar as tecnologias e, no final do processo, passam por feira de empregabilidade com vagas nossas e de empresas parceiras. Tem também o Elas na IA, focado em capacitação de mulheres como programadoras usando ferramentas de inteligência artificial. Tem focados para estudantes de baixa renda etc.
Segundo relatório de impacto desenvolvido pela Microsoft, esses projetos que você criou impactaram cerca de 1 milhão de pessoas. Que sensação isso traz?
Para mim, é uma honra. Construí muitas coisas do zero, usando coisas que sabia ou que achava que faria sentido para desenvolvedores na outra ponta. Acho que esses projetos que podem tocar em possíveis Cynthias, que estão batalhando por um espaço e não têm condições de chegar. Há um milhão de camadas que te impossibilitam de chegar numa oportunidade. Isso é meu maior orgulho: ter tornado o conhecimento, a tecnologia e as oportunidades mais acessíveis para pessoas que vieram de origens mais humildes como a minha.